terça-feira, 26 de março de 2013


Fio da História 2

Amigos,

Recomeço o Fio da História noutro endereço. Espero que possam acompanhar-me em:

http://fiodahistoria2.blogspot.pt

Aniceto Afonso





terça-feira, 17 de julho de 2012

Guerra Colonial, Uma notícia solta…


No dia 15 de Julho de 1971, fez agora 41 anos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros enviou ao Secretariado Geral da Defesa Nacional um ofício com o seguinte texto:
«Tenho a honra de levar ao conhecimento de V.Exª. que o diário esquerdista alemão Frankfurter Rundchau publicou, em 6 de Junho último, uma longa correspondência de Luanda assinada por Josef Raab em que se descreve por forma sombria e inquietante a situação militar em Angola. Helicópteros sul-africanos transportariam soldados portugueses em operações militares e técnicos da África do Sul estacionariam no Luso. O jornal ilustra o seu tendencioso artigo com uma fotografia de bombas de napalm no aeroporto “Gago Coutinho” (a primeira publicada na Alemanha) denunciando também o emprego de produtos químicos pelas nossas forças. Referindo-se ao número crescente de desertores, Raab pretende ter encontrado em Luanda “muitos brancos simpatizantes com o MPLA” e convencidos de que Lisboa “não poderá por muito tempo conservar aquela colónia”. Salienta ainda a grande importância de armamento de origem alemã utilizado contra os “movimentos de libertação”.
A firma de relações públicas que connosco colabora na Alemanha verificou agora ter sido o jornalista Jochen Raffelberg quem, sob o pseudónimo de Josef Raab, enviou para o Frankfurter Rundchau a correspondência acima mencionada.
O Sr. Raffelberg apresentou àquela firma, como prova das suas afirmações, uma série de fotografias, que junto remeto, onde se vêem bombas de napalm e um avião militar que estaria equipado para o lançamento de herbicidas. Mencionou ainda que o director do C.I.T.A., a propósito do seu desejo de se deslocar a Veríssimo Serrão, lhe teria dito que, “se um jornalista estrangeiro fosse até lá, nós deixaríamos de poder desmentir a existência de soldados catangueses instruídos pela Diamang”.
O Sr. Raffelberg fez parte de um grupo de jornalistas alemães que visitaram as Províncias de Angola e Moçambique em Abril-Maio do corrente ano.
Apresento a V.Exª. etc.»


 




















Podemos hoje afirmar que:
1 – Os jornalistas estrangeiros conseguiam aceder aos teatros de operações, apesar das formalidades que deviam observar, mas não existiu nenhuma campanha de informação continuada e incisiva contra o regime português ou contra a guerra;
2 – O uso de napalm e outros produtos químicos pelas forças portuguesas foi sempre muito difícil de provar;
3 – A partir do final dos anos sessenta passou a ser comum a presença de meios aéreos sul-africanos em apoio operacional às forças portuguesas, primeiro em Angola e depois em Moçambique, mas sempre sujeita a medidas de grande precaução. Em Moçambique, em especial na zona de Tete, também actuaram meios e forças da Rodésia.


Nota: Tanto este blogue como eu, que o alimento, vamos de férias. Regressaremos lá para Setembro, possivelmente renovados. Um período de reflexão faz bem a todos…

quarta-feira, 11 de julho de 2012

João Chagas, Povo, o menos culpado!


No dia 11 de Julho de 1918, faz hoje 94 anos, João Chagas escreveu no seu Diário, o seguinte apontamento, porventura bem actual:
“Les Tours, 11 de Julho
Em Portugal chegou-se a isto. À porta da casa onde se realizou a conferência evolucionista [reunião do Partido Evolucionista Republicano], um empregado do ministério das Subsistências espancava as pessoas que saíam com um chicote de cavalo-marinho. Um médico escreveu à Manhã: ‘O povo português contém o gérmen de todas as escravidões’. O autor deste conceito invoca a sua autoridade de médico e – acrescenta – de psicólogo, para o tornar público. Assim, no momento em que todas as energias nacionais nos eram precisas para mais uma vez reagir contra os golpes de um nefasto destino político, o que aparece são pedantes a fazerem frases sobre o afinal menos culpado dos males que nos afligem, que é o povo”.

sábado, 7 de julho de 2012

Guerra Colonial, Eles desconheciam?


Com data de 8 de Julho de 1968, faz hoje 44 anos, o Estado-Maior do Exército elaborou um memorando com o título “O Moral do Exército”, baseado num conjunto de documentos provenientes do Ultramar e das unidades de instrução, com conclusões muito pessimistas, em especial em relação aos quadros permanentes.
O memorando, na sequência de outras informações já produzidas, procurava determinar os factores que afectavam o moral das tropas, por forma a encontrarem-se soluções. Começando por referir um inquérito de opinião realizado no Instituto de Altos Estudos Militares no ano anterior, realça que, nessa altura se podia considerar o moral do Exército ainda razoável, “com tendência para baixar rapidamente”, atribuindo os seguintes níveis a esse estado moral:

Oficiais do QP ………………………. Fraco
Sargentos do QP …………………. Muito fraco
Oficiais do QC..……………………. Regular
Sargentos do QC …. ……………… Regular
Praças …………………….……………. Bom

A consulta de novos relatórios e contactos pessoais levavam à conclusão que não existiam melhorias na situação.
De facto, o memorando apontava sinais inequívocos desse estado de espírito:
a.         “Nota-se um aumento de pedidos de exoneração (e de passagem à licença ilimitada)”.
b.         “Recebem-se frequentemente informações pessoais do estado de desalento dos quadros”.
c.         “Grassa entre os QP uma maledicência sistemática que denota acentuado grau de desmoralização”.
d.         “Os relatórios de acção psicológica expõem uma situação que poderemos considerar de grave”.
e.         Nota-se, na Guiné, que o inimigo tem ultimamente capturado grupos de militares do Exército relativamente significativos – 11 em Abril e 8 em Maio”.

O memorando passa depois a enumerar “os factores deste clima psicológico”:
a. “Cansaço físico e psicológico provocado pela luta no Ultramar com sucessivas mobilizações”.
b. “Problema económico, provocado pela situação financeira e faltas de medidas de apoio e protecção aos militares e família”.
c. “Descrença quanto ao êxito da luta no Ultramar, em face do progresso da subversão. Este descrédito parece particularmente sensível entre os capitães do QP”.
d. “Influência do desinteresse de grande parte da população, que dá ideia de desistência, de aceitação tácita da derrota”.

Em anexo ao memorando procura-se analisar cada um dos factores indicados, sendo de salientar as explicações relacionadas com a descrença e com o desinteresse da população.
Relativamente à “Descrença quanto ao êxito da luta no Ultramar” é referido da seguinte forma: “Os militares do QP, designadamente os oficiais que denotam uma mentalidade amadurecida pelos sacrifícios e preocupações da guerra e uma elevada noção do cumprimento do dever conscientes e realistas, começam a sentir que os acontecimentos podem seguir um rumo que tornará improfícuo todo o seu esforço. Tal ideia causa frustração e desânimo, conduz à lassidão e podendo anular todo o entusiasmo, que é fonte de eficiência das forças militares”.
Quanto à “Incompreensão por grande parte da população em relação à luta do Ultramar”, os termos utilizados são os seguintes: “Em muitos dos nossos oficiais do QP há o convencimento de que o seu sacrifício não é reconhecido pela grande massa da população, que se mantém apática e indiferente aos problemas da guerra. Considera-se que este alheamento da população se deve fundamentalmente à falta de informação, ao nível nacional, acerca do que se passa no Ultramar e dos problemas do país em geral. Afastada dos acontecimentos, boa parte da opinião pública condena as Forças Armadas por não compreender em que se consomem tão avultados recursos económicos (…) A guerra é impopular porque a Nação não está mentalizada para ela. Se houver que pedir mais sacrifícios, poderá a Nação não corresponder, por não reconhecer a sua necessidade”.

Pode hoje dizer-se que, com seis anos de antecipação, estavam apontadas as causas que iriam movimentar os militares para o confronto com o poder político – baixo moral, especialmente entre os capitães, incompreensão da população, impopularidade da guerra. Nem os altos comandos militares, nem o poder político demonstraram estar à altura de gerir com sabedoria a situação, após sete anos de operações militares em África, e não pode dizer-se que não tivessem informações da realidade.
Ver: Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Os Anos da Guerra Colonial. Porto, Quidnovi, 2010, pp. 455-456.

domingo, 1 de julho de 2012

Igreja Católica, Uma audiência de rotura…


No dia 1 de Julho de 1970, faz hoje 42 anos, o Papa Paulo VI recebeu em audiência os dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos.
A atitude do Papa Paulo VI ao receber em audiência os representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas incentivou aqueles católicos que duvidavam da justeza das posições do governo a contestarem a hierarquia da igreja católica portuguesa, em geral colaborante com o regime e a sua política de continuidade da guerra. Foram poucos os casos de resistência pública, como aconteceu com as dissensões dos padres José da Felicidade Alves e Mário de Oliveira.
A condenação da guerra foi feita, entre outros momentos, nas celebrações do Dia Mundial da Paz de 1969, nos acontecimentos da capela do Rato de 1972, nos debates que tiveram lugar em 1973 na igreja paroquial de Olivais-Sul, na Assembleia Comunitária de Almada e em outros locais.
A Igreja Católica teve um papel decisivo na ascensão e na queda do colonialismo português durante o Estado Novo (1926-1974), pois eram confluentes os seus objectivos. De facto a defesa das colónias pelo Estado Português estava associada a um modelo civilizacional proposto e garantido pela Igreja Católica através da sua evangelização. O símbolo mais claro da aliança entre o Estado Novo e a Igreja Católica foi o Acordo Missionário estabelecido entre Portugal e a Santa Sé, assinado no mesmo dia da Concordata, a 7 de Maio de 1940 e que vigorou enquanto se manteve a soberania portuguesa em África.
O colonialismo português necessitava das missões católicas para contrariar a acção das missões protestantes, quase exclusivamente estrangeiras e que, embora fossem vistas como uma ameaça “desnacionalizadora”, não podiam ser impedidas de se estabelecerem por força do Acto da Conferência de Berlim que garantia, desde 1884-85, a liberdade de instalação de missionários. Por este conjunto de razões, as missões católicas foram, até ao começo dos anos 60 do século XX, a presença mais visível da soberania portuguesa em grande parte de vastos territórios coloniais, ignorados pela administração pública e pelas empresas portuguesas. A Igreja cobrava ao Estado o serviço missionário, fazendo-o porque, no fundo, também se entendia ela própria como elemento fundador e estruturante do Estado.
O começo das independências das colónias europeias, após a Segunda Guerra Mundial, não alterou a posição de apoio da Igreja Católica em Portugal à continuação da soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos. A 13 de Janeiro de 1961, dois meses antes da eclosão do conflito em Angola, uma nota do Episcopado da Metrópole, redigida como habitualmente pelo Cardeal Cerejeira, afirmava: “a guarda e conservação e desenvolvimento da herança, que todo o Portugal considera ter-lhe sido confiada pela Providência, está no ‘sentido’ da sua história, tem a significação e valor de serviço ao homem, à família, à sociedade, à ordem, à civilização, ao mundo”.
O episcopado português deixou claro, desde o início da guerra, que não aceitaria qualquer contestação católica à política africana do Governo.
Apesar da posição oficial da hierarquia, a questão colonial despertou cedo alguma sensibilidade particular nas minoritárias correntes católicas oposicionistas.
Quando, a 18 de Outubro de 1964, o Papa Paulo VI anunciou que iria presidir a um congresso eucarístico em Bombaim, Franco Nogueira, então chefe da diplomacia portuguesa, declarou a visita um “agravo gratuito” com argumentos religiosos, pois a razão da ofensa de Portugal era devida ao facto de Bombaim se situar na Índia que, anos antes, tinha invadido a cristianíssima Goa onde se encontravam as relíquias de S. Francisco Xavier. A Igreja Católica, através da sua hierarquia e dos seus órgãos de comunicação, como os jornais Novidades e Ordem, subscreveu este argumento.
O desenvolvimento de acções anticoloniais católicas em Portugal acentuou-se depois da conclusão do Concílio Vaticano II.
O começo das hostilidades em Angola, em Março de 1961, foi seguido de perseguições a Igrejas protestantes - consideradas aliadas dos “terroristas” - e da repressão do clero africano da Arquidiocese de Luanda. O vigário geral, Manuel Mendes das Neves, foi preso (e morrerá, exilado em Portugal, a 11 de Dezembro de 1966). Os restantes padres foram desterrados para Portugal, entre eles os padres Alexandre do Nascimento (que foi cardeal de Luanda após a independência) e Joaquim Pinto de Andrade.
A evolução em Moçambique foi diferente da de Angola. Os conflitos no interior da Igreja foram mais agudos pois foi mais violenta a guerra, principalmente a partir de 1970. Por outro lado, era mais fraca a presença portuguesa tanto na sociedade como na Igreja e eram em maior número os missionários estrangeiros, predispostos para sentirem os pontos fracos do nacionalismo missionário português.
Moçambique foi o único episcopado de matriz portuguesa que não manteve a regra da unidade pública. Uma facção chefiada pelo arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira, defendia expressamente a soberania portuguesa. Uma outra, mais numerosa e sobretudo mais activa, cujo expoente era o bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, atacava abertamente a identificação da Igreja com Portugal e preparava-se para defender o direito à independência. D. Manuel Vieira Pinto herdara a defesa das posições autonomistas e contestatárias do bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, falecido em 1967. O Dia Mundial da Paz de 1972 foi comemorado em Moçambique com manifestações de contestação por parte do clero. Do púlpito da catedral de Nampula, o bispo D. Manuel Vieira Pinto criticou o governo. Nas celebrações no Macúti, uma paróquia da Beira, o padre Joaquim Teles de Sampaio denunciou o massacre de Mucumbura, um povoado próximo de Tete (Novembro de 1971). Será preso a 14 de Janeiro, bem como o seu coadjutor, padre Fernando Mendes. Neste mesmo mês, foram presos os Padres de Burgos, espanhóis, devido à denúncia do referido massacre. Os excessos da guerra feriram fundo a consciência católica em Moçambique. Foi a Igreja Católica quem tomou a iniciativa de denunciar os comportamentos condenáveis das Forças Armadas portuguesas. O massacre de Wiryamu, ocorrido na zona de Tete, em Dezembro de 1972, foi divulgado por um sacerdote inglês, o jesuíta Adrian Hastings, em artigo publicado no The Times, a 10 de Julho de 1973, uma denúncia que ensombrou completamente a visita oficial que Marcelo Caetano fazia então à capital britânica.
O colonialismo português esteve também no centro do agravamento das relações entre o governo de Lisboa e a Santa Sé. A 5 de Julho de 1969, a Frelimo (Uria Simango), o MPLA (Agostinho Neto) e o PAIGC (Amílcar Cabral), tinham dirigido uma carta aberta ao Simpósio dos Bispos Africanos: acusavam a Igreja Católica romana de “apoiar explicitamente” a guerra feita por Portugal e condicionavam a “atitude futura” dos seus povos face à Igreja à “posição que a Igreja hoje tomar”. Era difícil falar mais alto e ser mais claro.
A audiência de 1 de Julho de Paulo VI provocou uma tempestade nas relações entre Lisboa e a Santa Sé. A ruptura esteve iminente e só não ocorreu porque o Vaticano declarou que aqueles dirigentes foram recebidos na qualidade de cristãos e o governo português preferiu aceitar esta pia justificação.
O colonialismo contribuiu decisivamente para quebrar a aliança institucional entre a Administração Pública, as Forças Armadas e a Igreja Católica que permitira séculos de relações desiguais, baseadas na exploração, mas, apesar dessa cumplicidade, a obra das missões foi assinalável nos campos do ensino, da saúde e da assistência.
Ver: Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Os Anos da Guerra Colonial. Porto: Quidnovi, 2010, pp. 559-563.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Henrique Galvão, O negro não passa de um animal de carga!


Em 27 de Junho de 1953, faz hoje 59 anos, foi publicada a Lei 2066 ou Lei Orgânica do Ultramar Português. O Estado Novo, depois da aprovação da Carta das Nações Unidas em 1945, cujo Artigo 73º definia os princípios de administração dos territórios não autónomos e a obrigação de transmitir ao Secretário-Geral informações sobre esses territórios, procurava um estatuto especial para as suas colónias que sustentasse a tese de que as colónias integravam uma grande nação pluricontinental e multirracial. O trabalho começou em 1951 com a integração do Acto Colonial de 1930 na Constituição e depois, pela publicação de uma nova Lei Orgânica do Ultramar.

Mas nem tudo correu bem. Primeiro, porque as Nações Unidas nunca aceitaram esta “habilidade”, condenando constantemente a atitude e a política de Portugal, e depois, porque algumas denúncias internas acabaram por esclarecer qual era a verdadeira situação nas sociedades coloniais. Entre estas denúncias, e em lugar de destaque, figura, por exemplo, em 1947, um relatório de Henrique Galvão apresentado à Assembleia Nacional em sessão secreta, depois de uma viagem de inspecção a Angola. É desse relatório o seguinte trecho:

“Os patrões criam obstáculos a uma solução humanitária do problema da mão-de-obra. Fazem-no contra, ou sob, protecção dos regulamentos oficiais, umas vezes iludindo as repartições encarregues de zelar pelo seu cumprimento, outras vezes subornando-as, explorando em seu benefício a falta de meios de coacção ou a branduras das autoridades, e usando de todo o poder e toda a influência que conseguem reunir. Eis os aspectos mais salientes da sua conduta.
a.      Resistência de toda a espécie a uma política de salários que seja económica e socialmente justa.
b.      Mau tratamento de trabalhadores. O castigo corporal ainda é usado; os patrões esquivam-se às suas obrigações no que se refere a alimentação, vestuário e assistência médica; a ideia de que o negro não passa de um animal de carga foi estabelecida; há uma indiferença manifesta quanto à saúde física e moral dos trabalhadores; uma classificação dos patrões pela forma como tratam os seus trabalhadores mostra uma tremenda percentagem de maus patrões.
c.       Desperdício de mão-de-obra. A mão-de-obra é usada como se fosse extraordinariamente abundante. Tudo é feito por mãos de negros, desde o puxar de carros do lixo até à drenagem dos pântanos.
d.      Carácter desumano dos recrutadores da mão-de-obra.
e.      Deslocação de trabalhadores para regiões distantes sem terem em conta a mudança brusca de clima. Os sofrimentos são especialmente árduos quando são levados do interior para a faixa costeira e de regiões saudáveis para regiões infestadas de moscas tsé-tsé.
f.        Abusos, não impedidos pelas autoridades, por parte dos comerciantes, para com os nativos.
g.      Desprezo absoluto quanto às condições de vida dos nativos.

Esta é, muito resumidamente descrita, a grave situação em que os povos nativos vivem e trabalham, embora o Governo tenha sido informado por mim de todos os pormenores.
Tomo a responsabilidade de provar que tudo isto é a verdade exacta. A única coisa que pode ser dita, é que não descrevi toda a verdade, ou melhor, que a não apresentei debaixo de todas as suas numerosas formas. Abstive-me de o fazer, só porque isso teria exigido muito mais tempo do que aquele de que eu poderia razoavelmente dispor para este propósito”.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Melo Antunes, Guerra injusta e guerra perdida...


No dia 25 de Junho de 1970, faz hoje 42 anos, realizou-se na Cooperativa de Estudos e Documentação, em Lisboa, um colóquio com o título “Reflexões sobre uma experiência pessoal” dirigido pelo capitão Ernesto de Melo Antunes.
Durante este colóquio foram abordados vários problemas ligados ao Exército e às Forças Armadas. Melo Antunes afirmou que “no regime fascista que nos governa os generais têm, através do Estado Maior General, influência decisiva na solução dos problemas militares, concentrando em si, nos bastidores, grande parte do poder político, perante o qual o próprio chefe do governo tem de se vergar”.
Melo Antunes disse que a guerra colonial era uma guerra injusta e era, além disso, uma guerra perdida. Criticou severamente a tese do governo de que a guerra do ultramar era benéfica para a economia do país e afirmou que não era verdade o boato de que a maioria dos oficiais estivessem materialmente interessados em fazer a guerra.
Melo Antunes exprimiu a opinião de que a solução da guerra só podia ser política – uma opinião partilhada pelos assistentes, onde a DGS destacou Pedro Coelho e Fernando Oneto.
Para Melo Antunes, a democratização das Forças Armadas só podia ser realizada com a queda do regime.

Quando eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos a 1ª edição de Os Anos da Guerra Colonial decidimos dedicar a obra a Melo Antunes, através de um texto que servia, ao mesmo tempo, de introdução. O texto original, por motivo da menor disponibilidade de espaço, veio depois a ser truncado na edição seguinte, pelo que nos parece oportuno publicá-lo aqui, neste dia em que passam 42 anos depois da realização do colóquio referido.

«MELO ANTUNES – UMA HOMENAGEM SENTIDA
É muito raro na história de qualquer povo um homem reunir em si a coragem física, a coragem moral e a coragem histórica. Ernesto Melo Antunes foi um dos raros portugueses em que essas virtudes se entrelaçaram para fazerem dele o grande homem que indubitavelmente é.
Combateu de armas na mão e com coragem reconhecida, numa guerra que ele sabia injusta e injustificada, granjeando o respeito dos seus camaradas; combateu politicamente o regime responsável pela guerra, assumindo como cidadão os riscos da atitude ética e moral da luta pela democracia e pela liberdade; e, por fim, teve a coragem histórica de assumir as responsabilidades pelo fim da guerra e do colonialismo português.
Ao dedicarmos esta obra a Ernesto Melo Antunes estamos a dar o nosso modesto contributo para o colocar na galeria de grandes figuras, onde ele devia ter lugar destacado, e para lhe agradecer, como portugueses e como militares, o seu excepcional contributo para que Portugal seja hoje uma nação respeitada e dignificada. Todos devemos a Ernesto Melo Antunes a possibilidade de decidir os nossos destinos em liberdade.
O texto que publicamos a seguir, o relato de um informador sobre uma conferência que Melo Antunes proferiu em 1970, é um extraordinário documento que revela o melhor e o pior de nós e de Portugal. De um lado, a coragem, a grandeza, a generosidade, a dignidade de um militar que, além da luminosa clarividência com que via o futuro de Portugal e da guerra colonial, desafiava um regime ignóbil de mãos nuas, apenas armado da sua inteligência e força de carácter; do outro o repugnante delator, o mesquinho agente infiltrado que trai aqueles que lhe abriram a porta, um ser sem nome.
É, contudo, a esse ser, a esse sabujo do regime, certamente treinado a reproduzir de memória as palavras incómodas, que devemos o documento excepcional que é a conferência de Melo Antunes.
Registe-se ainda como digna a atitude do então Ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, que mandou secamente arquivar o papel delatório, preferindo o militar oposicionista ao verme da situação.
Nós, os autores, sentimo-nos particularmente honrados em prestar este modesto tributo a Ernesto Melo Antunes, trazendo a público este texto, nesta obra sobre os Anos do Fim. Ele serviu-nos de exemplo e só podemos desejar que inspire também outros como nos inspirou a nós.

“No dia 25 do corrente, realizou-se na Cooperativa de Estudos e Documentação, pelas 21.30 horas, um “colóquio” sob o título de “REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL”, dirigido pelo Capitão ERNESTO DE MELO ANTUNES, tendo como animadores os dirigentes da Cooperativa, FERNANDO ONETO e Dr. PEDRO COELHO.
Durante este "colóquio" foram abordados vários proble­mas ligados ao Exército, ou melhor, às Forças Armadas, quer em países estrangeiros, como os Estados Unidos, quer em Portugal, especialmente no que diz respeito à maior ou menor influência que o Exército tem junto dos respectivos Governos.
Quanto aos Estados Unidos, o Capitão ANTUNES referiu-se largamente à decisiva influência que o Pentágono, isto é, os Gene­rais e o Estado Maior exercem sobre as decisões do Governo de Nixon, quanto à guerra do Vietnam. Afirmou que os Generais americanos, isto é, o alto Estado Maior, estavam estreitamente ligados às gran­des fábricas de armamento, fornecedoras do Pentágono, muitos per­tencendo aos seus Conselhos de Administração. Criticou severamente a política do presidente Nixon, quanto à guerra do Vietnam, que classificou de imperialista.
Depois de várias considerações sobre as Forças Armadas de diversos países da Europa, abordou o caso de Portugal.
Afirmou que o Exército exerce no nosso País, forte in­fluência junto do Governo e do seu chefe.
No regime fascista que nos governa, disse, os gene­rais, através do Estado Maior General, dispõem de influência deci­siva na solução dos problemas militares, concentrando em si, nos bastidores, grande parte do poder político, perante o qual o pró­prio chefe do Governo tem de se curvar.
O regime e o Governo são, de facto, dominados pelos oficiais generais, pois são eles que fazem a guerra no Ultramar, e as suas exigências são ordens para o Governo. As necessidades da guerra colonial são cada vez maiores, em homens e material, disse, e os altos comandos coloniais impõem a sua vontade ao Governo.
O regime de MARCELO CAETANO é, de facto, uma ditadura militar. O Governo, devido à guerra colonial está, presentemente, forte­mente influenciado pelos militares, que, através dos Estados-Maiores Generais, aqui e no Ultramar, impõem as suas decisões.
Ultimamente, disse, os generais que estão à frente dos altos Comandos no Ultramar exigiram ao Governo a compra urgente de helicópteros, para melhor controlarem as operações militares e a actividade dos terroristas.
O Governo curvou-se perante as exigências dos generais, disse, e comprou 120 helicópteros de 5 lugares e 20 outros de maior lotação semelhantes aos usados pelos americanos no Vietnam.
O nosso Corpo de Estado-Maior General é constituído, na sua maioria, por elementos reaccionários e conservadores, verdadei­ros burocratas, vaidosos e comodistas, que se limitam a dar ordens, na sua maioria, confortavelmente instalados nos seus confortáveis gabinetes, em Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, enquanto os ofi­ciais das diversas armas se batem na frente, pelos interesses in­confessáveis dos "tubarões" que enriquecem à custa do esforço militar colonial.
Há guerras justas e injustas, disse. A nossa guerra colonial é uma guerra injusta. E é, além disso, uma guerra perdida.
Criticou severamente a tese do nosso Estado-Maior Gene­ral, segundo a qual a guerra do Ultramar tem sido altamente benéfica para a Economia do País, permitindo a criação de novas indústrias e o desenvolvimento de outras, ligadas ao esforço de guerra. Contestou também a afirmação de que as consideráveis somas de di­nheiro, movimentadas pelos vencimentos dos soldados e oficiais destacados no Ultramar, têm tido vantagens na Economia das nossas Pro­víncias Ultramarinas, pois a maior parte das referidas somas são enviadas ou ficam na Metrópole.
Afirmou, ainda, que não era verdadeiro o boato de que a maioria dos oficiais combatentes no Ultramar estivessem mate­rialmente interessados em fazer a guerra, levados unicamente pelas vantagens de ordem material.
Isso não é verdade, pois a guerra colonial é deveras perigosa e esgotante, tanto moral como fisicamente. E os vencimen­tos dos oficiais em missão no Ultramar não são tão elevados - muito pelo contrário - que compensem os terríveis riscos e esforços que a guerra colonial impõe aos combatentes. Pelo menos, posso a­firmar, disse o Cap. MELO ANTUNES, que não é esse o caso dos oficiais de média patente - de capitão a tenente-coronel - que cumprem patrioticamente o seu dever de soldados, com verdadeiro espírito de sacrifício.
Na opinião do Cap. ANTUNES a solução do problema colo­nial só pode ser política, opinião perfilhada por todos os presen­tes! Militarmente, disse, nunca poderemos vencer a guerra colonial.
O prolongamento do esforço militar no Ultramar está esgotando gravemente a economia do País e sacrificando, ingloria­mente, milhares de jovens, entre mortos e mutilados, em defesa du­ma causa sem futuro e condenada ao malogro.
O próprio chefe do Governo não ignora esse facto, mas agora é demasiado tarde para ele recuar ou negociar.
Isso significaria a sua queda e a do regime.
O Cap. MELO ANTUNES referiu-se também a uma eventual democratização do Exército. Afirmou categoricamente que isso é impossível, presentemente. Por um lado, o País está em guerra e o Exército encontra-se, na sua grande maioria, em missão de combate no Ultramar, com os oficiais sujeitos a uma severa disciplina e li­gados aos seus deveres militares.
Por outro lado, o País é presentemente governado por um governo fascista, que é de facto uma ditadura militar, estando os oficiais democratas estreitamente vigiados e controlados pelas polícias militar e política (sic).
O verdadeiro poder, militar e político, está de facto, afirmou, nas mãos de um reduzido grupo de oficiais generais das Forças Armadas em altos postos de chefia, aqui e no Ultramar, e que, através dos Estados-Maiores Generais, impõem a sua vontade nas frentes de combate e na retaguarda, com a restante colaboração das po­lícias militar e política.
Por tudo isto, disse o Cap. MELO ANTUNES, o problema da democratização das nossas Forças Armadas, só será possível com a queda do actual regime. No pé em que as coisas se encontram presentemente é praticamente impossível qualquer tentativa revolucionária de carácter militar. Estamos em guerra, e as Forças Armadas batem-se no Ultramar no cumprimento dos seus deveres.
No momento presente compete aos dirigentes civis prepa­rar o terreno na retaguarda, através duma adequada e eficiente propaganda e da politização das massas, especialmente do sector estu­dantil, no sentido duma futura solução política para a guerra colo­nial, embora isso implique a queda do Governo e do regime de Marcello Caetano.
Para que seja possível a democratização do nosso Exército é indispensável derrubar o regime, eliminar os generais pró-Salazaristas, agora ligados ao Chefe do Governo, bem como as polícias.
As afirmações do Cap. ANTUNES foram aplaudidas por toda a assistência, bastante reduzida e seleccionada, cerca de 38 pes­soas, na sua maioria dirigentes da Cooperativa e suas famílias.
Tomaram parte activa no colóquio, além do Cap. ANTUNES, o FERNANDO ONETO e o Dr. PEDRO COELHO, que apoiaram entusiastica­mente as suas afirmações, louvando a sua coragem ao abordar tão grave e melindroso assunto. No final foi pedida a maior discrição da parte dos assistentes ao colóquio, quanto às afirmações do Cap. AN­TUNES, pois trata-se dum oficial no activo e sujeito a grandes san­ções, se as suas afirmações forem conhecidas dos seus superiores.

Lisboa, 26 de Junho de 1970”.

Texto de uma informação enviada ao ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, e que mereceu o seguinte despacho: “Arquivar em secreto”.
Fonte: Arquivo da Defesa Nacional, Caixa 7670, Documento 3».
Nota: sublinhados e maiúsculas do original.